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05/03/2025
Cinzas e águas, morte e vida

A liturgia católica é de grande riqueza simbólica. Observe como se inicia o tempo da quaresma: com “cinzas”. A quaresma é um período penitencial em que os catecúmenos se preparam para receber os sacramentos da iniciação cristã – batismo, crisma e eucaristia – na vigília pascal; tempo em que os outros fiéis, já batizados, são chamados aos exercícios espirituais de conversão para renovar, também na vigília pascal, as promessas do batismo.
Dito isso, pode-se afirmar que a quaresma atrai nossos olhares para as águas da fonte batismal. Os catecúmenos, porque nelas serão batizados (mergulhados), e os já batizados, porque serão aspergidos com a água ao renovarem suas promessas batismais. O mergulho-batismo significa a passagem da morte para a vida em Cristo, que venceu a morte e está vivo e ressuscitado. Esta é a fé de todos os cristãos.
As cinzas colocadas sobre a cabeça expressam o convite do Senhor à conversão, à penitência em favor de uma vida nova. Começa-se a quaresma com a imposição das cinzas; celebra-se a Páscoa com a aspersão das águas na renovação do batismo. Cinzas e águas, pecado e conversão, morte e vida.
Ora, tanto as cinzas quanto as águas são elementos da natureza. As cinzas são o resto de alguma matéria que foi queimada pelo fogo. É de se apreciar o quanto a liturgia se serve da matéria – água, fogo, fumaça, pão, vinho, óleo, perfume e outros – para expressar e celebrar a fé. Encontra-se, então, um nexo muito importante entre a criação e a dimensão sacramental da fé. Existe mesmo um laço fundamental entre ecologia e sacramentos. A Igreja trouxe para seus ritos elementos da criação ou da Casa Comum. Como celebrar o batismo sem água? Como celebrar a eucaristia sem pão e vinho? Como ungir sem o óleo?
Na quaresma de 2025 a Igreja do Brasil celebra mais uma Campanha da Fraternidade e propõe às comunidades um caminho de conversão que inclui o cuidado com a Casa Comum. Fala-se de fraternidade e ecologia integral. Inspira-nos o Papa Francisco, em sua Encíclica Laudato Sì: a afirmação de que “o ser humano é imagem de Deus não deveria fazer-nos esquecer que cada criatura tem uma função e nenhuma é supérflua... Todo o universo material é uma linguagem do amor de Deus, do seu carinho sem medida por nós. Tudo está interligado: a preocupação pelo meio ambiente, unida ao amor sincero pelos seres humanos e a um compromisso constante com os problemas da sociedade... Quando não se reconhece a importância dum pobre, dum embrião humano, duma pessoa com deficiência – só para dar alguns exemplos –, dificilmente se saberá escutar os gritos da própria natureza”.
São João Paulo II já dissera da necessidade de promover a “conversão ecológica”, isto é, conversão e santidade associadas à comunhão com Deus e ao cuidado com os irmãos e com a Casa Comum. Nesta quaresma, não deixe de avaliar sua relação também com a criação. Mude seus hábitos em favor da vida dos irmãos e da obra da criação. Passe das cinzas às águas.
Dom João Justino de Medeiros Silva
Arcebispo de Goiânia e 1º Vice-Presidente da CNBB
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